Vidro tosco

Embebedo-me em fotografias estranhas, caras perfeitas que desconheço, momentos de que não fui parte, sorrisos que não esbocei. Desenho um auto-retrato que não se assemelha ao meu rosto. Procuro no baú das recordações memórias de momentos que não vivi. Não sou eu quem está aqui!

Construo a cristal o projecto de estátua que pretendo que ergam de mim... Crital? Como se apenas tenho vidro tosco?! Vidro tosco como o desta garrafa de vinho velho, incapaz de me afogar as mágoas.Vidro tosco como o plástico desta caneta que já não flui como outrora. Vidro tosco, disforme, desagradável, como o monstro que me sinto quando me odeio tanto quanto a este vidro tosco que me impede de ver a luz! Filho da puta!

Parto a garrafa. Substituo a caneta velha por um lápis que me permita apagar tudo. Entro em delírio. Visto-me de raiva, de rancor, de fúria, de coragem. Pego no vidro. O seu aspecto tosco, que tanto me enfurece, deixa-me agora nostálgica, saudosa, triste... Cáio no chão. O vidro parte. Nos meus olhos escorre o sangue que jorra da palma da minha mão.
Partiu. Parti.

Sem comentários:

Enviar um comentário