Último dia no planalto mirandês

Pedra sobre pedra, dezenas de metros de rochedo morto, árido, frio, nu; daquele cinzento triste de Inverno (que aqui permanece no Verão) manchado de verde mofo, podre. A rasgar este penedo, um rio. Qual água cristalina, qual azul imenso, qual verde translúcido?! Aqui há verde escuro, verde sujo, verde baço. Um pouco mais acima, os mesmos penedos, os mesmos segredos desta singular beleza. Tudo é feio, triste, sombrio, tudo está morto e tudo é tão particularmente maravilhoso…
Um toque de gaita típica interrompe a minha contemplação. Continuo a passeata domingueira com um caminhar atento e reflexivo. A majestosa, velha e sacra catedral faz-me parar de novo. Aqui tudo tem este tom sombrio, tudo está coberto de mofo e cheira a morte. Morbidez mental excessiva. Ouve-se um piu-piu, piu-piu, de um ninho camuflado no parapeito da janela.
Uns passos adiante, sento-me num banco de jardim tão paradoxal como a minha existência: de um lado, frondosas árvores civilizadas, do outro, despidas árvores selvagens, cujas folhas caídas pisam transeuntes fantasmáticos... (Corpos que se arrastam sem sentido ou permanecem sedentários num vácuo de existência. Passos repetidos que percorrem inconscientemente os mesmo trilhos e incorrem nos mesmo sarilhos; ou, temendo deixar pegada, retraem a passada, e nada. Existências que não chegam a sê-lo; que sendo-o se perdem sem encetar caminho, no caminho errado, no final de um caminho mal traçado. Ridículos herdeiros de dívidas ridículas, para cobrir ainda mais ridículos caprichos. Indiferentes, ausentes, temerários, cobardes, ingénuos, ridículos, nesta ridícula esfera civilizada, em que só os verdadeiros ridículos não se sentem ridículos!) O tom mantém-se: troncos cinzentos, folhas caídas apodrecidas, de um lado, e fingidas coberturas verdes, do outro. Artificial ainda o ruído dos simpáticos repuxos hiperactivos. Mas o verdadeiro rio, esse, está parado, esquecido, coberto de lodo, morto…
Cansada de tantos cadáveres, regresso a casa; também eu algo mais morta do que ontem.

Acordo com um raio de sol que penetra pela janela. É início de primavera e o tempo está deveras agradável. Que vontade de sair pela porta, desbravar florestas, dominar os rios, sentir o vento bater-me no rosto e, simplesmente, sorrir…O despertador toca. Tornou-se um hábito acordar antes deste ruído metálico de juventude (que não sei porque motivo insisto em guardar) me lembrar que a partir de agora o tempo está contado ao segundo. Um dia mais deste enfadonho trabalho me espera… Reunião às nove, escritório até à uma, e uma hora para almoçar, às duas encontro com os clientes, às 4 no tribunal e…bem, só para regressar a casa não há hora marcada. O telefone começa a tocar. Apresso-me. Dou uma última olhada para o espelho antes de sair. Tenho imenso cuidado com a imagem, mas a base Clinique não consegue esconder rugas e olheiras de cansaços que se acumulam. Demasiadas noites passadas com processos intermináveis, à procura da lei apropriada por entre esta inflação de regulamentação. Demasiadas noites a tentar encontrar a verdade da mentira. Demasiadas noites a relembrar histórias passadas mais ou menos imaginadas, saudosa de aventuras que não vivi, que adiei eternamente…frustrações. Demasiadas noites de sexo sem prazer, ao lado de um sempre mero companheiro que acabo por trocar pela carreira. Rotina: habituei-me a ela. (O tempo é o maior mágico na terra…) Parto. O semáforo vermelho obriga-me a parar. Enquanto espero e desespero confirmo o plano do dia na minha agenda. Surpreendo-me com o aniversário de uma amiga! Uma das poucas que sobreviveu às mandíbulas do tempo e do trabalho…ou se calhar não! Ligo-lhe. O número já não está atribuído…Uma buzina impede-me de cair em mais um momento de saudosismo e melancolia. O semáforo está verde. No tribunal nada de novo: sessão adiada por falta de comparência do arguido. Aproveito para adiantar um dos imensos processos que se multiplicam na minha secretária… (…talvez o tempo não seja o único mágico na terra!) Anoiteceu. Chego a casa tarde, uma vez mais. Cheira a rosas, um sabor adocicado faz-me salivar e uma música suave paira no ar. Ele preparou-me uma surpresa. Odeio surpresas e hoje estou tão cansada… Faço um esforço por sorrir quando ele me vem dar um beijo. Há pétalas de rosa espalhadas por todo o lado. Morangos com chocolate e duas taças de champanhe em cima da mesa. Balbucio um tímido “Obrigada” e, antes que tenha tempo de me responder e tomar iniciativa do que quer que seja, digo-lhe “Lamento, mas vou-me deitar, estou cansada.”. A porta bate mais forte do que nunca. Saiu. Sinto-me aliviada. Respiro fundo e vou-me deitar. Algo que também já faz parte da rotina. Não consigo adormecer. Incomoda-me o som dos ponteiros do relógio: tic-tac, tic-tac… Um copo de água e um comprimido costumam ser bons companheiros de cama. Desta vez sinto-me carente. Não tomo apenas um. Acabo com a rotina, para sempre.

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